domingo, 24 de fevereiro de 2013

O Chato É Antes de Tudo Um Forte


ESTÁ TUDO TÃO chato no Brasil, que vou escrever sobre os chatos. Você é chato? Nunca saberá. O chato não se sabe como tal, ou melhor, sabe sim, mas sempre tem a esperança de sair da categoria e ser aceito como não-chato. Por isso, chateia todo mundo. O chato é, antes de tudo, um carente. Ele vive do sangue dos outros, do ar dos outros, o chato precisa de você para viver. Sozinho, o chato não existe. Existem vários tipos de chatos. O mais famoso é o chato de galochas, que eu pesquisei e descobri que a origem do termo fala do cara que sai de casa com chuva torrencial, põe as galochas e vai a tua casa para te chatear. Há chatos masoquistas e sádicos. O primeiro é aquele que gosta de chatear para ser maltratado: “Porra, não enche, cara!” Adora ouvir esta frase, para remoer um rancor delicioso que valoriza sua solidão: “Não me entendem, logo sou especial!” O chato sádico, não. Ele quer ver teu desespero e escolhe os piores momentos para te azucrinar: “Poxa…sua mãe morreu ontem, mas ouve meu problema com minha mulher…”

Eu não vou fazer aqui um tratado geral dos chatos, como já fez o Guilherme Figueiredo, aliás um livro chato. Como lutar contra eles! Por exemplo, o Tom Jobim, uma das maiores vítimas de chatos, ensinou-me um truque: “Use óculos escuros. O chato fica desorientado quando não vê teus olhos. O chato adora ver o próprio rosto refletido em teus olhos desesperados. Com você de óculos escuros, ele desiste e vai embora.” O chato gosta de ver teu sofrimento, por isso não adiantam as respostas malcriadas, resmungos. Ele gruda mais. Nem adianta fingir simpatia, na esperança de que ele parta. Não há solução. Se bem que a reza ajuda. O chato está falando e você ali lembrando a “Ave-Maria”. Te acalma como um mantra e Deus pode vir em tua ajuda. 

Outra técnica que funciona muito é chatear o chato. Seja o chato do chato. Ele pergunta: “Por que você não volta a fazer cinema? ” E você retruca: “Que você está achando do PMDB?” Faça-o falar, como o Freud agia com as histéricas. O chato falador é mais suportável do que o chato perguntador. Depois que eu comecei a falar na TV, virei um papel apanha-moscas para chatos. Não quero bancar o famosinho mas, veja bem ( como dizem os chatos) , o sujeito te vê na TV, no quarto onde ele está transando com a mulher e você na tela, falando sobre o Chavez… O cara fica íntimo teu e te agarra na rua, no shopping e gruda, como um colega conjugal. Uma vez, tinha um chato no celular (grande tipo novo, o chato do celular) e eu tomando um cafezinho no aeroporto, oito da manhã, indo para Porto Velho, com conexões. “Ihh… meu amor… sabe quem está aqui ao meu lado? … O Jabor… é e… quer ver?” Se vira para mim e: “Fala aqui com minha namorada… o nome dela é Eliette.” Esse é primo do chato-corno: “Minha mulher te ama; dá um autógrafo pra ela… Escreve: Te amo, Marilu…” (O chato-mala nunca tem caneta ou papel): “Escreve aqui mesmo neste guardanapo molhado…”

Temos também o chato do elevador. Estou num elevador vazio, indo para o 20Q. Entra um cara e me olha. Eu, precavido, já estou de cabeça baixa. Há uns momentos tensos de dúvida: “Ele ousará falar? “, eu penso. “Falo com ele ? “, ele pensa. Passam uns andares. “Ele não vai agüentar”, eu penso. Não dá outra. “Você não é aquele cara da TV?” “Sou… ha ha…”, digo, pálido, fingindo-me deliciado. “Só que eu esqueci teu nome… Como é teu nome mesmo?” “É Arnaldo”, digo eu, querendo enforcá-Io na gravata de bolinhas. “Não… é outro nome… ah… é… Jabor… isso… porra, claro… E é você mesmo que escreve aquelas coisas… ? ” E eu penso, sorrindo simpático: “Não; é a tua mãe que me manda lá da zona.”

Tem o chato-mala, sempre no ataque. Outro dia, também no aeroporto, eu subindo uma escada, com duas malas e o cara berrou: “Eiii, me dá um autógrafo! ” Todo mundo olhando e eu com duas malas. “Não me leve a mal, mas estou pegando o avião…” E ele: “Poxa… tu tá ficando é muito mascarado, cara!” 

Um dia, houve o clímax, a apoteose do chato do autógrafo. Fazia eu um modesto xixi num banheiro de cinema, aquele xixi triste e pensativo, quando o cara chegou: “Me dá um autógrafo?” Fiquei uma arara: “Estou fazendo xixi… tu quer o quê?” E ele: “Qual é a tua? Tá pensando que eu sou viado? Enfia esse autógrafo…” 

Tem muitos tipos. Tem o chato crítico. Ele te agarra na rua e começa com elogios rasgados: “Você é o máximo; aquele teu artigo foi demais, mas… (trata-se do chato do ‘mas’…) mas, você disse uma besteira horrível — o PIB da China não é aquele que você falou…” 

Um chato muito encontradiço é o chato da Ponte Aérea… Ele fica à espreita na sala, atrás de uma coluna. Você entra… ele te vê de longe… Você pensa: “Será que ele me viu?” Você finca os olhos no jornal, trêmulo de medo e esperança. Dali a pouco, passos a teu lado, uma maleta pousando no chão e ele gruda: “Posso lhe dizer uma coisa…?” E pela lei de Murphy, em geral ele estará na poltrona ao lado no avião.

Tem o chato da foto: “Posso tirar uma foto com você ? ” Pronto. Lá estou eu na rua, abraçado a um idiota de bigode, com todo mundo olhando. Flash! E o cara some num segundo, com um rápido “obrigado”. Esses só querem nos roubar a imagem… O chato da foto sempre me deixa carente…

Há muitos tipos. O chato-altissonante, por exemplo. Grita no bar, de longe: “Ei, labor, que que tu tá achando da guerra Israel-Árabe?” Um altissonante uma vez me berrou na saída de um teatro: “Adoro você… ( eu sorrio, rubro de modéstia) mas tu precisa parar falar besteira sobre o Lula, hein… ! Olha, por isso o Ferreirinha aqui te odeia! ” (Ao lado dele, está o “ajudante de chato”, rindo com deboche. )

Tem todo tipo. E agora tem os “e-chatos” na internet que, aliás, botaram na rede artigos boçais e maniqueístas, que eu nunca escrevi, assinados com meu nome. Já puseram um em que “eu” esculhambava a Adriane Galisteu. E agora tem outro rolando, chamado “Faz parte”, onde o falso “eu” humilha aquele rapaz que ganhou o Big Brother. Além de e-chatos, esses são canalhas e burros.

Arnaldo Jabor - "Amor, sexo e poesia"

sábado, 15 de dezembro de 2012

Viajando E Escrevendo, Escrevendo E Viajando >> Roberto Carlos Maratta


Viajando E Escrevendo, Escrevendo E Viajando


Prólogo

Atrevo-me a escrever e nem sei a classificação do que escrevo. Será uma crônica, um conto, um artigo? Não sei, prefiro chamar de um singelo “texto”. Escrevo. Leio, releio e sinto vergonha do que escrevi quando me vêm à cabeça as crônicas de Rubem Braga com um vocabulário distinto e uma formalidade peculiar ou o surrealismo de Murilo Rubião que nos envolve com uma trama e, de repente, nos faz saltar do assento ao depararmos com uma passagem, um desfecho ilógico ou chocante e fechando minha analogia penso no dote de Arnaldo Jabor em transformar o trivial em arte literária.

[...]

Consinto com a cabeça.

Acordei querendo escrever algo. Muitas ideias sobre amor, saudade, Schopenhauer e universo. Abro o browser e acesso a rede social com minhas centenas de amigos virtuais que me deixam à vista frases de efeito, pedidos indiretos de bajulação, imagens escarnecedoras ou que passam a ideia de ‘bom samaritano’. Aprecio. E desvio minhas vontades: vou escrever sobre escrever!
‘A gente somos o que escrevemos. A gente se esforça mais não escrevemos tudo certo, mais concerteza o importante é que se entenda.’
Faça-me um favor, se for assim não escreva nada!
Sim, o vocabulário brasileiro é extenso e nossa gramática não é das mais simples. É difícil saber, na íntegra, todas as regras de pontuação, as colocações pronominais e ser um dicionário ambulante de regência. É difícil, mas é nosso dever enquanto brasileiros! E acreditem todos nós somos capazes disso!
Dói as vistas ler palavras como ‘mais’ ao invés de ‘mas’ ou ‘menas’ ao invés de ‘menos’ ou expressões como ‘concerteza’ ao invés de ‘com certeza’. Um detalhe interessante é que nem mesmo o Word reconhece ‘menas’ e ’concerteza’, pois o software corrige automaticamente esses erros – experimente tirar a prova disso. Também, os ouvidos são vítimas de tal holocausto linguístico tendo que suportar dizeres como ‘poblema’, ‘mortandela’, ‘beneficiente’, ‘eu trusse’ e ‘eu tavo’. O desprazer aumenta quando vemos e ouvimos pessoas que, em tese, não deveriam cometer tais erros de fala e escrita. Pessoas formadoras e influentes.
Semanas atrás foi de grande repercussão a notícia de que o Brasil está em penúltimo lugar em um determinado ranking da educação mundial e isso não poderia ser diferente tomando como base a norma inculta da Língua Portuguesa que vemos e ouvimos diariamente. Que alarmante! Que triste! E vai continuar ou até mesmo piorar. Solução? Cada um tem a sua e a minha é: leia livros. Pelo menos um por mês, de início. E existe um livro obrigatório para todo ser pensante, um livro comum a todas as áreas do conhecimento, um livro chamado dicionário. Possua um bom exemplar. Só não vale deixá-lo de enfeite na estante!

[...]

Epílogo

Em um texto ou outro, grandes escritores como Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Pablo Neruda defendem ou dão a entender que o importante é expressar-se sem ter preocupação em obedecer aos padrões normativos de linguagem. De fato, mas não são apenas as ideias, na forma escrita, que são cobradas, são? Aliás, até hoje não encontrei, sequer, uma vírgula mal colocada num texto dos nobres Pessoa, Neruda e Clarice.



P.S.: Deixo dois bons links que possuem ferramentas que nos auxiliam em nosso dever de nos expressarmos bem e corretamente.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Uma palavra emitida, assim como essa mesma palavra omitida, tem um poder e tanto.


Roberto Maratta

terça-feira, 24 de abril de 2012


Bem ao nosso lado podem estar as maiores surpresas que a vida proporciona; para encontrá-las ou percebe-las, exige-se bem mais que mapas ou percepção.
Às vezes, a felicidade que busca pode estar caminhando com você.

Roberto Carlos Maratta

sexta-feira, 30 de março de 2012

Minha (nossa) vida: Eu (Você) e os outros. >> Roberto Carlos Maratta


Tenho minha vida repleta de defeitos, erros e acertos. Os outros também têm a minha vida, apenas com acertos; perfeita.

Eu tenho minhas escolhas, que embora seja óbvio, são todas incertezas. Os outros também têm minhas escolhas, que são certezas absolutas.

Tenho minhas "quedas" e nessa hora, não há outras pessoas, não há ninguém, senão Deus para dar beijinho de "antes de casar sara".

Tenho umas moedas e até algumas dezenas monetárias que passo adiante, para uma vítima da miséria. Os outros também têm moedas e muito mais, mas preferem ajudar com palpites-soluções que não saem do balcão do boteco ou do salão de beleza.

Tenho zelo por muitas pessoas. Para os outros, tenho segundas intenções.

Tenho orgulho e gratidão por pessoas em minha vida; para muitas dessas, não passo de uma opção.

Tenho errado bastante. Algumas vezes, os mesmos erros do passado, e tenho muitos erros novos a cometer.

Importante é viver, pois deixar de viver é muito pior que deixar de existir.

Roberto Carlos Maratta

quinta-feira, 29 de março de 2012

Crônica


Renata, de vestido novo, ficou de lado na frente do espelho, virou o pescoço para ver o traseiro, era um espelho grande que dava para ela ver o corpo por inteiro. Quando coloquei meu paletó, nem sei como me notou, quando olhava para o espelho ela não via mais nada, perguntou você vai sair a esta hora para trabalhar? Meu negócio é vender seguros, você sabe disso, não tenho horário, respondi. Eu preferia que tivesse, são cinco horas da tarde, não sei a que horas vai voltar, já vi que não vamos sair hoje à noite, de que adianta eu comprar roupas novas se não saio com elas? Desculpe, mas tenho que ganhar dinheiro. Você não tem ganho muito ultimamente. A concorrência é muito grande. E isso não era uma desculpa. Pelo menos vou ver o meu desfile, ela disse, ligando a televisão. Havia uma TV a cabo que passava um desfile de moda todos os dias. Quando eu estava na porta Renata disse, as mulheres elegantes agora andam com seios de fora, o que você acha? Ainda não vi isso. Eu disse mulheres elegantes. Quantas mulheres elegantes você conhece? Só você. Se as coisas continuarem assim, não vai ser por muito tempo. Peguei o carro e parei na porta do meu futuro cliente, um prédio de cinco andares. Não parei exatamente na porta, parei um pouco antes. Ele sempre chegava de táxi carregando uma pasta, era um sujeito muito gordo, devia ser das pizzas que comia. Saiu com dificuldade do carro, pensei que desta vez ele estava sozinho, mas o outro cara, um barbudo, saiu logo em seguida. Eu queria visitá-lo quando ele estivesse sozinho, o outro sujeito não estava no seguro e eu não ia desperdiçar o meu latim. Eles entraram no edifício e eu acendi um cigarro. Meu celular tocou. Atendi. É você? Quem podia ser?, eu disse. Diz a senha. Cara, você anda vendo filmes demais. É a maneira que eu trabalho. Você já devia estar acostumado. Foz do Iguaçu. Tenho um seguro para você. Vai ter que esperar. Estou no meio de uma venda. Que apólice é essa? Você trabalha para outro corretor? Isso não interessa. Quando acaba? Não sei. Você também devia estar acostumado com a minha maneira de trabalhar. Acho que você anda meio promíscuo. Preciso ganhar a vida. Você não arranja negócios suficientes. Que ruído é esse? Não ouvi nenhum ruído. Eu ouvi. Você sabe que celular é uma merda. Linha cruzada, os narigudos entram facilmente. Fodam-se os narigudos, não estamos dizendo nomes. Troca de celular. Estou com ele há menos de dois meses. É muito tempo. Eu troco todos os meses. Você é um corretor. O vendedor também tem que fazer isso. Ainda mais um como você, que mija fora do penico. Acabou? Te ligo daqui a dois dias. Esperei meia hora e chegou o entregador de pizza. Falou no interfone que ficava na portaria, a porta foi aberta, ele entrou. Uma mola fechava a porta. O prédio não tinha porteiro. Acendi outro cigarro. Esperei uma hora, fumei 8 cigarros esperando  o barbudo sair. Um táxi parou na porta do prédio e pouco depois o gordo e o barbudo saíram juntos e entraram num táxi. Eu não ia perder tempo seguindo os dois, não me interessava o que eles faziam. Voltei para casa. Antes de entrar, desliguei o celular. Renata estava vendo televisão. Voltou rápido. Vamos pedir uma comida no chinês? Está bem. Você não está muito entusiasmado. Você não gosta de comida chinesa. Confessa. Confesso que não gosto de comida chinesa. Você só gosta de bacalhau. Está tirando sarro comigo? Mais ou menos. Como foi o desfile de moda? Algumas modelos desfilaram com a bunda de fora. O que você acha? Não conheço mulheres elegantes. Está mesmo tirando sarro comigo. No escritório da companhia de seguros você não vai mesmo ver mulheres desfilando com a bunda de fora. Onde que isso acontece? Nos lugares chiques. Lugares onde ninguém anda com um revólver debaixo do sovaco, como você. Não é revólver, é pistola. Me sinto mais tranqüilo com ela. Já imaginou, estou vendendo um seguro numa joalheria e aparece um assaltante? Se aparecer, o que você faz? Não sei. Isso ainda não aconteceu. E você foi vender seguro numa joalheria hoje? Não. Mas levou o revólver. Virou hábito. É pistola. Para mim é tudo a mesma coisa. Vou ligar para o chinês. Comemos a comida do chinês. Renata continuou vendo televisão. Eu fui deitar. Antes fumei um cigarro na área de serviço, Renata não me deixava fumar em nenhum outro lugar da casa. Mais tarde ela entrou no quarto, tirou a roupa. Minha vida é tão chata, ela disse, ainda bem que você não nega fogo. O mérito não era meu. Com a Renata ninguém ia negar fogo. Durante uma semana eu fiquei vendo o gordo chegar de táxi, e o barbudo estava sempre com ele. Nunca vi os dois conversando. Depois aparecia o entregador de pizza. O gordo ficava cada dia mais gordo, mas o outro cara parecia ficar mais magro, vai ver não gostava de pizza. Um dia eu fiquei a noite inteira nas imediações do apartamento do gordo, os cigarros acabaram e eu fiquei ali, esperando o barbudo sair, mas ele não saiu. Então passei a chegar lá de madrugada. O barbudo saía por volta das sete da manhã, ele usava sempre um blusão largo, bom para esconder uma ferramenta, tinha cara de tira, devia pegar o serviço na delegacia de manhã. O gordo só saía de tarde. Cheguei em casa e encontrei um bilhete da Renata. Pra mim chega, fui para a casa da minha mãe. O engraçado é que ela sempre tinha me dito que não tinha mãe. Levou as três malas com as roupas dela, também não tinha muito mais coisa para levar, ela só comprava roupa. Esse assunto tinha que ficar para depois, eu tinha outro problema para resolver antes. Peguei o telefone e pedi comida no chinês, não sei bem por quê. Acho que queria ficar na ponta dos cascos, e a melhor maneira para isso é comer mal. Meu cliente morava no quarto andar. O corredor estava deserto. Tirei o silenciador do bolso e adaptei no cano da pistola. A fechadura da porta podia ser aberta até por um amador. Entrei. O corretor havia me fornecido a planta do apartamento. Não ouvi nenhum barulho, nem fiz nenhum. Ninguém na sala, nem na cozinha. Fui para os quartos, as camas estavam desarrumadas mas nenhum sinal do cliente. A porta do banheiro estava entreaberta. Abri lentamente a porta do banheiro com o cano do silenciador. Meu cliente estava deitado na banheira, com água até o pescoço. Me viu quando entrei, e deu um suspiro. Eu devia atirar logo, mas não atirei. Vai perder o carreto, ele disse, com sotaque de português. Começou a tirar um dos braços de dentro da água. Devagar, eu disse, apontando a pistola para a cabeça dele. Ele me mostrou o pulso, sangue escorrendo. A água não estava muito vermelha. Uma gilete brilhava no chão de azulejo. Sentei no banco ao lado da banheira. Me mostra o outro braço, pedi. Também tinha o pulso cortado. Coloquei as luvas e revistei a casa. Encontrei um revólver, um 22, o tambor carregado. Tirei as luvas e saí. Desci o elevador, pensando. Quando cheguei ao térreo, apertei o botão do quarto andar. Entrei novamente no apartamento do cliente. Ele viu quando entrei no banheiro. Voltou? Quanto tempo demora isso?, perguntei. Não sei. Mas não dói. Coloquei as luvas, fui à sala, peguei a arma do cliente e retornei ao banheiro. Não olha para mim, eu disse. O 22 não faz muito barulho. Atirei na cabeça dele. Mais uma noite sem dormir. Deixei o revólver no chão do banheiro, ao lado da gilete. Liguei do carro para o corretor. Fiz o serviço. Faço o depósito hoje, disse o corretor, e desligou. Gosto de tomar banho de banheira, ler o jornal deitado na água quente. Mas não tomei banho. Entrei só para urinar. Não almocei. Mais uma noite sem dormir. Seria bom se Renata estivesse comigo.

Rubem Fonseca 

quinta-feira, 8 de março de 2012

Uma Questão Ociosa

Já começamos a ouvir, um pouco em toda a parte, a expressão ou rótulo literatura de internet. Como nunca gostei de ver a palavra literatura acompanhada do que seja, limito-me a esboçar o meu famoso sorriso de mico-dourado e declaro que estou fora. Literatura só pode ser literatura, e todo mundo sabe o que é. Que ao longo do processo vão surgindo peculiaridades formais em função das próprias peculiaridades do meio é apenas mais um detalhe, que em nada vai influir na excelência literária deste ou daquele autor. Já disse por aí que Stendhal faria miséria num blogue — imaginem só esse exemplo maior dos escritores com um blogue na internet traduzido entre nós como A CARTUXA DE PARMA. Quem escreve bem escreve até em pedaço de papel de pão e manda entregar em casa. Estão fazendo muita turbulência em torno desta questão, mas é turbulência ociosa, como dizia Euclides da Cunha a respeito de Dom Quixote.

Luiz Guerra